sábado, 7 de março de 2015

"Agora É Tarde"... Falou demais, Alexandre

No último dia 25 de fevereiro, o programa Agora É Tarde, apresentado pelo comediante Rafinha Bastos e veiculado todas as noites pela Band, reprisou uma entrevista com Alexandre Frota, datada de 22 de maio de 2014. Nessa entrevista o ator revela – em tom de gozação e deboche – que teria praticado sexo com uma mãe de santo, dando ao entendimento que tal ato ocorrera contra a sua vontade. Não afirmo se tratar de um estupro e não cabe a nós julgar o Frota, mas existe uma impressão de estupro, apenas o Judiciário deve realizar julgamentos penais, seguindo o devido processo legal. Diante desse fato muitas dúvidas foram encaminhadas a minha amiga Izabela, portanto, a pedido dela escrevi essa nota a fim de tentar esclarecê-las. Muitos perguntaram se é possível punir Alexandre Frota pela conduta do suposto estupro. Bem, a punição nesse caso pelo estupro fica prejudicada, primeiro, pois não se sabe se o fato é real, desconhecemos quem é a vítima e onde se encontra. Assim, fica impossível iniciar uma ação penal em razão do estupro, pois não temos indícios de materialidade, ou seja não temos elementos que demonstram que o crime pode realmente ter ocorrido e quem é a sua vítima. Esclarecemos duas espécies de estupro previstas na norma penal. A primeira delas é o estupro propriamente dito, ou seja, realizar ato sexual com alguém sem consentimento, mediante violência ou grave ameaça. Nesse caso é necessário que a vítima manifeste sua vontade pela ação penal (represente) para que o Ministério Público inicie o processo (ofereça denúncia). Outro tipo de estupro também previsto no Código Penal é o estupro de vulnerável, que criminaliza o ato sexual, mesmo com o consentimento da vítima quando ela não é capaz de oferecer resistência ao ato ou não tenha capacidade para o necessário discernimento da prática sexual; ou seja: menores de 14 anos, pessoas com grave deficiência mental, pessoas em coma, etc. Nesse caso a ação penal poderá ocorrer mesmo sem a vontade da vítima. Mais importante que discutirmos se esse ato é crime ou não, é refletirmos como ele representa a cultura do estupro, a naturalização da violência contra a mulher e o machismo, tão arraigado em nossa sociedade. Devemos lembrar que o papel de gênero feminino trata-se de uma construção social, as características de gênero exercidas pela mulher não são efetivamente biológicas, mas sim ideológicas que servem como fundamento para a dominação das mulheres pelos homens. Esclareço que meu discurso feminista não se configura uma campanha de ódio aos homens. Repudio todo discurso de ódio e tenho convicção que não resolveremos a misoginia com a misandria. Clamo portanto pela igualdade de direitos entre homens e mulheres e pelo respeito da autonomia da vontade de todos os seres humanos. Em uma sociedade na qual os homens tem o “direito” de passar a mão em uma mulher durante o carnaval, roubar um beijo durante um show e tudo isso é visto como uma brincadeira cultural a qual a mulher deve se submeter. Não raras vezes ouviremos: “mas ela provocou”, “deu brecha”, “bebeu demais e quando bebe todo mundo é dono”, “mereceu”, “olha como estava vestida, estava pedindo” e até mesmo “eu sei que ela gosta” Pergunto eu, onde está a autonomia das mulheres que não podem ter domínio nem do seu próprio corpo? Quando um estupro pode ser visto como piada? Outro ponto que me incomoda muito nesse caso é o elemento “Mãe de Santo” da suposta “piada”. Troquemos a Mãe de Santo pela Pastora, ou pela Freira, certamente teríamos uma indignação generalizada dos religiosos, porém a violência contra as religiões de matrizes africanas também é naturalizada. Infelizmente, temos presenciado com constância a depredação de centros de umbanda e de candomblé, a violência contra pessoas dessas religiões e até mesmo homicídios com motivação de intolerância religiosa. Não podemos olvidar de debater outro ponto que esse caso revela, o não cumprimento da função social da mídia. A Constituição Federal, em seu art. 221, prevê que a mídia deverá cumprir finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; bem como respeitar aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Não é difícil perceber que nossa mídia não cumpre essa norma, precisamos assim termos formas de controle social da mídia. Bem, quero falar sobre mídia e direitos humanos, concessão pública de mídia, diferença entre controle social e censura, enfim, como esse post está ficando longo de mais e ainda não acabei, rs, deixo o link de uma palestra minha na PUC sobre esse tema para os interessados: https://www.youtube.com/watch?v=wSp9KORUfVY Nessa palestra comento o filme do Intevozes “Levante sua voz”: https://www.youtube.com/watch?v=KgCX2ONf6BU . O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social - é uma organização que trabalha pela garantia de Direitos Humanos na mídia e representou perante o Ministério das Comunicações pedido de suspensão do programa “Agora é Tarde” em razão da entrevista do Frota: http://intervozes.org.br/intervozes-apresenta-representacao-ao-ministerio-das-comunicacoes-pedindo-suspensao-do-programa-agora-e-tarde/ Como esse post pode ter alguma utilidade pública deixo aqui algumas orientações para casos de estupro - A vítima deve evitar o banho logo após o crime. Apesar de ser um desejo da vítima, o banho poderá atrapalhar o exame de corpo de delito e a coleta do sêmen que poderá ser essencial para identificação do agressor. Deve-se procurar uma Delegacia de Polícia para registrar o fato; e logo após um hospital para que a vítima receba a profilaxia necessária para evitar a gravidez e reduzir as chances de contaminação de DST´S. Também temos serviços públicos que prestam atendimento psicossocial e jurídico a essas vítimas. Coloco abaixo alguns espaços e serviços importantes relacionados com o debate que aqui fizemos: - Disque Direitos Humanos: Recebe denúncias de violações de Direitos Humanos, inclusive denúncias anônimas : 100 ou 08000311119 - Casa de Direitos Humanos: presta atendimento a todos os casos de Direitos Humanos, inclusive às vítimas de estupro. Avenida Amazonas 558. Telefone: 32703200 Deixo aqui um grande abraço para a Izabela, para seus amigos e para os nossos amigos. Caso tenham dúvidas ou precisem de outras informações, estou à disposição. (Ana Carolina Gusmão. Advogada. Coordenadora da Casa de Direitos Humanos de Minas Gerais)